Uma empresa paraguaia que distribui cigarros eletrônicos, a Agatres, criou uma rede de influência digital com celebridades, modelos e páginas de festas no Instagram, no TikTok e no YouTube para promover perfis de vendas da sua própria marca de vapes, a Nikbar, e atrair jovens brasileiros ao produto ilegal, mostra investigação do Núcleo.

Cantores como o funkeiro Kevinho, o trapper Kawe e os sertanejos Zé Felipe e Matheuzinho divulgaram os pods da empresa, assim como pelo menos 25 outros influenciadores mapeados pela reportagem – a maioria deles do segmento de fitness e um deles piloto de automóveis da Nascar Brasil.

É ✷ importante ✷ porque…

  • Celebridades, páginas de festas e influenciadores divulgaram livremente produtos ilegais e contrabandeados

  • Empresa paraguaia patrocinou videoclipes de trap no YouTube e fez publis em raves nas redes para atrair jovens brasileiros ao vaping

  • Plataformas ignoram legislação antifumo brasileira e permitem promoção de cigarros eletrônicos

Também identificamos 12 festas que foram patrocinadas pela Nikbar e tiveram desde sorteio de vapes até a distribuição de cigarros eletrônicos, além de dois podcasts e cinco videoclipes de trap que fizeram placement da marca. Todas essas ações de marketing operaram entre ago.2020 e dez.2023, mas foram mais ativas entre 2021 e 2022.

O Núcleo identificou que as regras de comunidade da Meta e do TikTok permitiram a Agatres a divulgar a Nikbar, mesmo com o produto sendo ilegal no país. Ambas as plataformas adotam diretrizes próprias para a promoção de produtos de tabaco que são mais permissivas do que as normas da Anvisa ou a legislação antifumo brasileira.

Big Tech ❤️ Big Vape

Na prática, essas diretrizes isentam as plataformas de removerem conteúdos que promovem cigarros eletrônicos e obrigam as autoridades a monitorarem ativamente as redes sociais em busca de violações à lei toleradas pelas políticas das big techs.

“Essas regras orientam errado os usuários ao permitirem um perfil que promova tabaco”, avalia a advogada Adriana Carvalho, diretora jurídica da ONG antitabagista ACT Promoção da Saúde. “Se alguém denunciar o conteúdo, a plataforma não vai tirar porque, pela regra dela, pode ficar, então vai precisar denunciar a alguma autoridade para haver iniciativa”, lamenta.

À reportagem, a Anvisa disse que a agência criou um projeto chamado Epinet, que monitora plataformas e solicita a elas a remoção de conteúdos ilegais.

“No período entre janeiro de 2023 a junho de 2024, foram retiradas mais de 16 mil URLs contendo propaganda ou venda de dispositivos eletrônicos para fumar”, afirmou em nota.

DIFERENÇAS. O TikTok libera o conteúdo que “promove produtos de tabaco”, incluindo cigarros eletrônicos. A Anvisa, no entanto, proíbe qualquer forma de exposição ou divulgação de vapes e pods, inclusive menções a marcas e à divulgação de catálogos, como no caso da Nikbar.

Já a Meta diz que “varejistas físicos e online podem promover itens de tabaco disponíveis para venda fora dos nossos serviços”. Só que, desde 2011, a propaganda comercial desse tipo de produto só é permitida nos pontos de venda físicos, enquanto sua venda pela internet é irregular desde 1996.

Antes disso, a Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco (CQCT), um acordo internacional ratificado pelo Brasil em 2006, estabeleceu que “publicidade e promoção do tabaco” é “qualquer forma de comunicação, recomendação ou ação comercial com o objetivo, efeito ou provável efeito de promover, direta ou indiretamente, um produto do tabaco ou o seu consumo”.

O que a Meta disse ao Núcleo

A Meta nos enviou o comunicado de um porta-voz da empresa. “Nossas políticas globais estabelecem limites à visualização e distribuição de conteúdos de tabaco. No Brasil, trabalhamos em colaboração com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e entre julho e dezembro de 2023 restringimos mais de 5.800 conteúdos no país reportados à Meta pela agência relacionados a diferentes bens regulados, entre eles o tabaco.”

O que o TikTok disse ao Núcleo

O TikTok se limitou a nos enviar suas políticas de conteúdos e anúncios, sem explicar o porquê delas autorizarem a promoção de produtos de tabaco, inclusive aqueles proibidos no Brasil. Os links eram os seguintes: https://www.tiktok.com/community-guidelines/pt/regulated-commercial-activities#2 https://www.tiktok.com/community-guidelines/pt/regulated-commercial-activities#4 https://ads.tiktok.com/help/article/tiktok-ads-policy-dangerous-products-or-services?lang=en

Influencers do vape A rede de influenciadores identificada pela reportagem serviu para impulsionar cerca de 44 páginas de vendas da Nikbar no Instagram, sediadas em cidades do país inteiro, de Boa Vista (RR) a Santa Maria (RS). As contas mantinham o padrão “Nikbar + nome da cidade”.

Hoje, pelo menos quatro desses perfis seguem ativos no comércio irregular por meio de números de WhatsApp disponíveis na bio dessas contas. Uma deles disponibiliza até menu para agendamento de deliveries.

O consumo de cigarros por jovens, eletrônicos ou não, preocupa porque nessa fase o cérebro ainda amadurece.

“A chance de você ficar dependente e virar um consumidor para o resto da vida cresce”, diz a médica psiquiatra Carolina Costa, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead).

Nosso levantamento nas redes partiu de documentos da própria Agatres, que forneceram as bases e pistas para essa apuração. Eles estavam disponíveis em uma pasta pública da empresa, que manteve até 17.jun.2024 uma série de materiais de marketing de cigarros eletrônicos em um drive aberto e linkado na página inicial de seu site.

“Nas redes sociais, optamos por trabalhar com conteúdos não comerciais e explorar o lifestyle da marca”, diz um dos documentos da Nikbar obtidos pelo Núcleo.

Assim como o mosquito é o vetor da dengue, o da dependência de nicotina é o marketing – Carolina Costa, Abead